John Kenneth Galbraith, um dos rostos daquele sector do pensamento económico mais execrado entre os anos 80 e os primeiros dias de Outubro, disse uma vez, segundo o diário New York Times, que o citava no obituário de 30.4.06: «Um dos meus maiores prazeres, ao escrever, resultava de pensar de que talvez o meu trabalho pudesse aborrecer alguém numa posição confortavelmente pretensiosa. Mas, depois, dava-me conta de que tais pessoas raramente lêem.»
Galbraith, como o seu mestre Maynard Keynes, simplesmente não aceita o dogma ultra-liberal da harmonia espontânea entre o interesse do talhante, do padeiro e do homem que vai jantar, para parafrasear uma célebre frase de Adam Smith. Só que os seus opositores, se lêem, nem por isso concedem que a intervenção nos mercados está, desde logo, justificada pelo conteúdo ético e político que se associa – como a ciência económica desde os seus actos fundacionais sempre reconheceu – a todo o processo de produção e troca.
É verdade que um democrata dos EUA está longe de se assemelhar em sofisticação ao CEO de uma empresa pública privatizada que, em conluio com a guarda-avançada dos accionistas e de uma parte do establishment partidário, captura o capital disponível para dois fins básicos: a fixação de privilégios remuneratórios e indemnizações injustificáveis e operações especulativas de alto risco e curtíssimo prazo que, como diz Soromenho Marques, vêm tendo por resultado essa «absoluta miséria» ética que se traduz na tentativa de salvar, com o sistema económico, os «gestores e especuladores corruptos» (JL, 22.10.08). Esses mesmos que, ao mesmo tempo que batalhavam ideologicamente na frente da desregulação e da privatização dos serviços públicos que constituem o núcleo da soberania, mas também da própria ordem social e da redistribuição, pregavam a desideologização da acção política.
O Secretário-Geral do PS falou, este fim-de-semana, num Waterloo para os que advogavam o fim do papel regulador do Estado. Mas não é só o Estado que deve regressar. É a política, como conflitualidade e pluralidade, para usar palavras já antigas de Augusto Santos Silva. É, como diz, por seu turno, Carlos Leone, a ideologia, e neste caso, também para criar um caminho que faça frente ao que, em fómula feliz, chama «socialismo distópico».
A questão, diria, está em saber se aqueles de que se fala como derrotados são, ou não, um Fabrice de seu Stendhal.
Imaginemos que não. Soromenho Marques mostra-nos que, por ora, não são eles os derrotados, mas precisamente aqueles, muitos milhões, de quem se dirá, «invertendo a tirada de Churchill:”Nunca tão poucos ficaram a dever a tantos”».
Usando ainda a imaginação, consideremos, uma vez mais, as palavras de Galbraith em uma das suas obras derradeiras, The culture of contentment, obra que, em francês, recebeu como título A república dos satisfeitos:
Para servir o contentamento, havia, e há, sempre três exigências fundamentais.
A primeira é que se deve justificar uma limitação geral do papel do Estado na economia. Deve haver uma doutrina que ofereça uma presunção plausível contra a intervenção dos poderes públicos. […]
A segunda exigência, mais específica, é encontrar uma justificação social para a aquisição e a posse de riqueza, sem entrave nem inibição. […] É necessária uma demonstração que prove que aquele que enriquece […] serve um objectivo social elevado e sério.
A terceira exigência consiste em justificar uma diminuição do sentimento de responsabilidade pública pelos pobres. Aqueles que se encontram nesta situação, os membros da classe inferior estrutural e socialmente bloqueada, devem ser muito concretamente encarados como os arquitectos da sua própria infelicidade.
Perante esta check-list, é bom de ver que os socialismos contemporâneos acolheram muitos dos ideologemas da satisfação. Mas também, face à gravíssima situação que hoje se vive à escala mundial, é indiscutível que alguns dos motivos clássicos da esquerda têm de ser retomados, contra uma deriva que vinha reduzindo intencionalmente as representações da esfera política a uma retórica dos ´modos de vida´ e das ´questões de sociedade´.
E isto deve ser feito antes mesmo de nos debruçarmos sobre os múltiplos significados futuros de socialismo.
João Santos
Membro fundador do Clube A Linha
3 comentários:
Caro João, excelente post!
Rui Alexandre
Finalmente se começa a ver uma real preocupação em discutir política em Cascais.
Que esta sessão seja a primeira de muitas e que inspire outros.
Parabéns ao autor do post que não conheço.
Abraço
João Martins
(Cascais)
Apresento uma sugestão aos autores do Blog e aos membros do Clube que seria a de criar uma caixa de sugestões para iniciativas futuras.
Abraço,
Paulo Alexandre
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