Hoje (05.01.10) a plataforma pró-referendo entregou na Assembleia da República uma petição, com cerca de 90.000 assinaturas exigindo a marcação de um referendo, imagine-se, a uma liberdade individual. Um referendo cuja única finalidade é perguntar à nação se considera que alguns cidadãos podem, como todos os outros, usufruir de um mesmo conjunto de direitos, liberdades e garantias.
Isto, mesmo à revelia do que na CRP se assume como garantido, ou seja, que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.” (Artº. 13º - Princípio da Igualdade – CRP)
Ora, de que se trata esta petição na sua mais profunda natureza? Trata-se, claro está, da tentativa de legitimar, através da obrigação da abertura da discussão no Parlamento, de um conjunto de preconceitos religiosos e pró-reacionários. Perfeitos resquícios do Estado Novo.
Se a CRP estabelece o laicismo de Estado parece-me no mínimo paradoxal que no artigo 1587º do Código Civil (Casamento católico e civil) se afirme que (1) O casamento é católico ou civil (o casamento é civil e ponto final! O que se passa na Igreja é uma cerimónia tão credível como o que acontece numa mesquita, numa sinagoga ou num ritual de casamento cigano); e que (2) A lei civil reconhece valor e eficácia de casamento ao matrimónio católico (…).” Não obstante estas considerações legais, a verdade é que o legislador dá, naturalmente, primazia à lei ao afirmar que se considera como Casamento o matrimónio católico. Ou seja, apesar do casamento ser um contracto civil, a lei reconhece legitimidade ao matrimónio católico. É o matrimónio católico que é reconhecido (ou seja, se submete) perante a lei, geral e universal, sendo-lhe reconhecida a mesma legitimidade do casamento civil.
Não está em causa a iniciativa de um conjunto de cidadãos pedir que o parlamento se pronuncie acerca de determinado assunto. O que está em causa é o assunto em particular.
Estes cidadãos estão, em suma, a pedir aos deputados, que se abstenham de votar algo para que foram mandatados e que retribuam ao povo o direito de se pronunciar relativamente a quê? A um assunto que mais não é do que um conjunto de direitos individuais. Individuais! Sim isso mesmo. Isto porque, quando votaram nas eleições legislativas, cerca de 90.000 eleitores se abstiveram de ler os programas eleitorais dos partidos que se propuseram alterar esta situação de pura injustiça social. Não leram, não perceberam, e agora querem emendar a mão.
É pura desonestidade querer comparar este pedido de referendo ao pedido de referendo à IVG. Para esta última, naturalmente que se justificou o referendo, uma vez que estava (e está) em causa a liberdade de uma mãe, e de um pai, porem termo a um processo de gravidez. Aqui estavam ainda envolvidos recursos públicos de saúde. A situação, pelo seu melindre, exigia que os portugueses se pronunciassem e expusessem directamente a sua posição relativamente a uma questão de consciência.
Porém, o casamento entre pessoas do mesmo género não é uma questão de consciência. Por isso é um absurdo que tenha que ser referendada. Mais. Com a legislação que temos já deveria ser inevitável que este tipo de casamento fosse aceite. Afinal, nada na lei o impede. Basta que se revejam os artigos referentes à adopção (que alguns entendem que deve ser restringida) e à sucessão de bens por heranças e a situação ficaria resolvida.
É tão legitimo pedir este referendo como pedir um referendo para que se vote a liberdade dos clérigos se casarem. É absurdo! Não querem casar-se, aceitam as regras da santa madre igreja, pois que aceitem. Não podem é com isso querer limitar a liberdade de outros que estão absolutamente alheios a essa realidade bafienta!
Rui Alexandre,
Politólogo
1 comentário:
Sobre o texto... é manifesto que o seu autor é politólogo... mas não é constitucionalista. Senão não repetia o absurdo de, primeiro, classificar uma pretensão como uma liberdade individual; segundo, não afirmava o seu espanto pelo pedido da marcação de um referendo sobre esta matéria.
Imagine-se o que será dito se, como já foi anunciado, o PS apresentar uma proposta de referendo sobre a Regionalização... uma imposição constitucional consagrada e plasmada no texto constitucional desde 1976!?!
Mesmo que hipoteticamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo fosse uma "liberdade individual", alguém que dominasse a ciência jurídica jamais desconheceria que são imensas as restrições legais que existem e que condicionam (quando não excluem) pessoas do gozo, do exercício ou mesmo da titularidade de um Direito Fundamental.
Depois o argumento contra a convocação do referendo deixa no ar a ideia de que seria um absurdo "perguntar à Nação" se esta concorda com a alteração das regras do casamento. Mas depois argumenta-se com a Democracia representativa para encontrar a bondade e a legitimidade legiferante. Mas, só por uma questão de esclarecimento: não é o PS (e o BE... o PC tenta passar despercebido neste assunto) que invoca o voto dos portugueses no PS (e no seu programa) para justificar a legitimidade do Governo para apresentar a proposta de Lei e para a AR a aprovar?!? Então qual é a diferença? Quando se elege os deputados não se pergunta à Nação qual é a composição da AR que pretende?!?
Sobre o que a CRP diz no artigo 13º, já começa a ser aborrecido: esta disposição constitucional não é a consagração do "igualitarismo", antes limitando-se (e não é nem pouco nem pouco importante) a consagrar o princípio da proibição da discriminação que não seja desproporcional e injustificada. A não ser assim, como se compreenderia a não inconstitucionalidade da chamada "Lei da Quotas"?!?
É evidente que não compreende o que diz o art. 13º. E o sintoma é muito evidente: cita o artigo a eito. Como se ele fosse self-evident...
Sobre os qualificativos («conjunto de preconceitos religiosos e pró-reacionários»... «perfeitos resquícios do Estado Novo») demodés e com origem tão facilmente identificável... dispenso qualquer comentário: eles próprios tratam disso...
Apenas diria que são mais "panfletários" que académicos... e a um politólogo exige-se algo mais. Creio eu...
Sobre o excurso em redor do Código Civil... fico-me por aqui.
Como volta ao Direito Constitucional («não está em causa a iniciativa de um conjunto de cidadãos pedir que o parlamento se pronuncie acerca de determinado assunto. O que está em causa é o assunto em particular») eu volto a tentar esclarecê-lo. Não sei se sabe, mas a CRP e a "Lei do Referendo" definem quais os assuntos sobre os quais não pode ser convocado um referendo. A contrario sensu deve concluir-se que todos os demais o podem ser. Assim os órgãos com competência o decidam propor e convocar.
E, já agora, volto a pedir: como é que o mesmo colégio eleitoral tem o poder de eleger deputados (e os motivos que cada eleitor mobiliza para os escolher são vários, complexos e de geometria variável) e estes ficam mandatados para «alterar esta situação de pura injustiça social»; mas o mesmo colégio eleitoral, em razão da importância da questão, não o pode fazer em sede de referendo? Onde é que está a coerência?!?
Além disso, nem percebe o perigo da sua afirmação: e se nas próximas eleições, PSD e CDS propuserem-se revogar a lei que as esquerdas agora querem aprovar; e se o colégio eleitoral, no próximo acto, lhes der maioria absoluta ... têm ou não legitimidade para o fazer?
E a sua "boca" final é, no mínimo risível: voltar à linguagem e à canga da !ª República só pode ser fruto de um recalcado desejo de regresso aos tempos de um regime que nem às pessoas do PS recomendava...
Cumprimentos,
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