Miguel Torga
Esta é a madrugada que eu esperava
Sophia de Mello Breyner Anderson
1.ª Palavra: Valores
“Liberdade feita dia” - assim chamou Eduardo Lourenço ao dia da Liberdade. O 25 de Abril é a matriz fundadora e o código genético do actual regime democrático. É preciso começar por dizê-lo, em favor da memória e contra o esquecimento. E sendo uma Revolução vencedora, não substituiu uma propaganda por outra propaganda, nem uma cultura oficial por outra cultura oficial.
Porque havia em Portugal um pensamento único - e hoje não. Havia o dogma - e hoje não. Havia um sistema construído para impor uma visão única, uma verdade única ou, se preferirem, uma mentira institucionalizada. E hoje não.
Por isso, mesmo que por vezes nos pareça que os velhos fantasmas estão a renascer, mesmo que por vezes se consiga falsificar a História, mesmo que por vezes se ofendam os heróis do 25 de Abril, é sempre possível repor a verdade e é sempre possível reparar a injustiça, como, por exemplo, fez o Estado ao conceder à viúva de Salgueiro Maia a pensão vitalícia que lhe tinha sido recusada e atribuída a dois agentes da PIDE por alegados “altos serviços prestados à Pátria”.
Antes do 25 de Abril, não se podia discutir. Agora pode. Antes do 25 de Abril não se podia responder à mentira. Agora pode. Essa é a força do 25 de Abril. Essa é a sua superioridade moral: Liberdade de dele próprio se poder discordar.
Porque se o 25 de Abril é incompatível com um pensamento único, também o é com qualquer tentativa de privatização ou apropriação exclusivista. Por isso este tema ganhará em ser abordado pela óptica das cores nacionais e dos cravos vermelhos. Não é monopólio de uma geração nem de uma força política. Abril é de todos.
Aí reside talvez a maior derrota do 25 de Abril, que não foi só uma festa de Liberdade, foi também uma promessa de Fraternidade. Mas este conceito, não por acaso, tem sido progressivamente substituído pelo de Solidariedade que, partindo da ideia de diferença, não convive tão bem com aquela igualdade e irmanação de que fala a “Grândola, Vila Morena”. São outros os tempos e outros os valores.
2.ª Palavra: Juventude
Não se pode exigir que as novas gerações vivam o 25 de Abril como aqueles que sofreram a ditadura e a ela se opuseram. Para os que nasceram depois, o 25 de Abril já faz de certo modo parte deles, é quase como ar que respiram. Só assim se percebe que não sintam a necessidade de o comemorar como as mulheres e os homens da geração que operou a Revolução ou a ela aderiu.
Contudo, impressiona que muitos jovens não saibam sequer o que foi o 25 de Abril, nem o que significou para Portugal. Como sabemos, os mais novos, sobretudo quando interrogados sobre o que sucedeu em 25 de Abril de 1974, produzem afirmações que surpreendem pela ignorância de quem foram os principais protagonistas e pelo total alheamento relativamente ao que foi viver praticamente meio século em ditadura.
A verdade é que os jovens estão menos expostos à informação política e, consequentemente, ao seu conhecimento. Quem não se lembra, há não muito tempo, dos outdoors espalhados por Lisboa exibindo um anúncio de uma rádio pimba que nos dizia; “Política? Ouve só o que te interessa.” Era uma menina com dois brócolos enfiados nos ouvidos que apelava à inconsequência, à demissão, ao gosto pela ignorância.
Meus caros amigos, sendo assim importa perguntar: o que fazer para mudar as atitudes na sociedade portuguesa, e em particular na juventude? Que formas de participação política e social inovadoras e novos canais de comunicação e divulgação podem ser criados para recuperar o interesse das pessoas pela participação pública e cívica?
É incontornável assumir que a política não tem sido capaz de suscitar com sustentabilidade o interesse dos jovens. Nesta perspectiva, Abril continua por cumprir, pois a juventude é o horizonte de qualquer transformação social digna desse nome. Porque o 25 de Abril, tal como a República, tal como a Nação, é cada vez mais daqueles que não participaram do seu acto fundacional – e é natural e bom que assim seja.
Os Valores de Abril só terão prolongamento com jovens empreendedores e dinâmicos que – tal como os jovens Capitães - ousem projectos de risco, mas agora empreendidos por agentes de excelência na vida colectiva, empresarial e académica, na educação e na justiça, bem como nos domínios da cultura, da inclusão social, do ambiente e da investigação científica. Em todos os casos, numa ética de serviço público, globalmente considerado.
Foi o 25 de Abril que permitiu o encontro de Portugal com a Europa. Julgo que numa visão política da Europa de acordo com Abril, neste momento sensível de crise da construção europeia, um país como Portugal deve procurar estar no núcleo duro dos centros de decisão europeus, impedindo que a UE seja regida por um directório de grandes potências.
É fundamental que Portugal tenha um papel na definição do futuro da Europa. Não podemos limitar-nos à defesa do nosso quinhão do orçamento comunitário. Temos que ir mais além, com uma visão política própria, fazendo de Portugal hoje, tal como no passado, uma Nação de vanguarda. Porque, como escreveu Fernando Pessoa – “a Europa jaz, posta nos cotovelos. (…) mas o rosto com que fita é Portugal.”
Não devemos hesitar em defender os interesses nacionais. Nem arrogância, nem subserviência perante os poderes europeus. Penso que a chamada “partilha de soberanias” em nada afecta, antes reforça, a identidade nacional, pois partilha não é sinónimo de alienação ou desistência. Não me conformo com uma visão da Europa que a reduza a uma vasta teologia do mercado.
Julgo que o espírito de Abril desejaria uma Europa mais social, mais democrática, mais participada e menos assimétrica, em que a construção europeia não apague o Estado-Nação. Penso, como Jacques Delors, que não há um só povo, há povos europeus. E estou de acordo com a sua fórmula: “A União Europeia deve continuar a ser uma associação voluntária de nações.” Ou seja, uma construção plural do tipo “a Europa dos Estados Unidos”, em lugar do modelo federalista de uma espécie de “Estados Unidos da Europa”.
Revolução precursora, Abril mostrou ao mundo que era possível passar de uma ditadura para a democracia sem cair numa nova ditadura. Foi essa experiência triunfante que abriu caminho às transições democráticas na Espanha e na Grécia, no Brasil e em outros países da América Latina tendo, mais tarde, servido ainda de exemplo e inspiração a países africanos e do leste europeu.
Nesta perspectiva, o 25 de Abril tornou Portugal muito maior do que o seu pequeno espaço físico. Libertou o povo português, permitiu o nascimento de novas pátrias de língua oficial portuguesa, tornou-se importante “case study”sobre o processo de transição para a democracia. Ao contrário do que afirmam os seus detractores, o 25 de Abril não diminuiu Portugal; acrescentou Portugal. Acrescentou Portugal da sua liberdade e da sua dignidade. E da emergência de novas nações com as quais se estabeleceram novos laços de cooperação e fraternidade.
Essa dimensão universalista não pode ser esquecida. E por isso não podemos aceitar que Portugal volte a ser aquele “país quietinho”, de que falava Teixeira de Pascoaes. O que o 25 de Abril nos ensinou é que um país pode ser maior que o seu tamanho, tamanho esse que precisamos de voltar a ter: o tamanho, como dizia Natália Correia, da nossa “alma transportuguesa”. Que é, ao fim e ao cabo, o tamanho e o espírito do 25 de Abril.
A actual crise mundial, resultado da falência de um sistema neo-liberal que enriquece os ricos e empobrece a grande massa da humanidade, exige uma nova ordem internacional, em que a política não se deixe capturar pela economia, antes lhe imponha as suas leis, que são as leis do interesse geral sobre os interesses particulares, sectoriais ou coorporativos. Uma condução da pólis na perspectiva global do homem como razão de ser.
É possível aspirar a esse novo humanismo, que revogue a “Sociedade de Mercado” em que temos vivido, cujos sequazes não têm política, não têm ideologia, não são de direita nem de esquerda – talvez mesmo não se interessem por esses “academismos” -, já que a sua única motivação é o dinheiro.
(...)
Auditor de Defesa Nacional
Auditor de Política Externa Nacional
2 comentários:
É com grande orgulho que leio, estas palavras com grande sentido, escritas por um grande amigo…
Viva a grande Liberdade!
Eduardo Lacerda
É com grande orgulho que leio, estas palavras com grande sentido, escritas por um grande amigo…
Viva a grande Liberdade!
Eduardo Lacerda
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