O lugar dos partidos nas sociedades de democracia avançada é indiscutivelmente central no que concerne à viabilização do funcionamento das instituições que veiculam a vontade popular. Estas instituições são lugares de diálogo e combate. De combate através do diálogo. De diálogo como forma avançada de combate.
Se os partidos não são tribos, os seus membros portam-se frequentemente como submissas relíquias de sociedades primitivas. Prosternando-se perante o xamã, envergam as cores do clã e fazem-se investir das qualidades do animal totémico. Que, tanto como o alce, a águia ou a pantera, os ignora e à força que julgam possuir. É esse o segredo da obediência cega, que erradamente se toma por disciplina.
Nos partidos democráticos, os tiques de democracia plebiscitária em que nos vamos convertendo no vasto espaço europeu – evitando o voto e a manifestação expressa da vontade individual, tanto quanto se possa – forçam a apatia e a convergência abúlica. Nos partidos democráticos sem uma forte tradição cívica pretérita a venerar e preservar, mas apenas vinculados à dispersa e contraditória gesta de heróis que não deixaram descendência, a probabilidade de se multiplicarem os exemplos de firme vinculação à sociedade, ao interesse público e a uma ética de serviço público é diminuta. Enfim, é diminuta e impressionantemente rara uma militância que seja, ma mesmíssima medida, um exercício de cidadania activa.
Como diz João de Almeida Santos, influente militante do PS, ao contrário da Roma imperial, em que «o conceito de cidadania […] mais não significava que o direito à não exclusão, ou seja era uma cidadania mínima, fraca, integracionista, instrumental» (JAS, 1999, 17) a cidadania contemporânea não apenas «pode prescindir da exigência de vínculos comunitários de tipo tradicional» como é, ao mesmo tempo, «inclusiva e exclusiva» (loc. cit., 19). Inclusiva porque estruturada em torno de consensos institucionais, aqueles que respeitam a direitos fundamentais e ao sentido de projecto colectivo que impregna mais ou menos as diferentes constituições nacionais. Mas exclusiva, «porque implica afirmação da diferença no interior do universo múltiplo de programas que cabem no máximo denominador comum dos princípios objecto de consenso» (loc. cit, 19-20). Este máximo denominador comum é a própria constituição política.
Outro influente militante do PS, Augusto Santos Silva, cita Hannah Arendt: «A política repousa sobre um facto: a pluralidade humana. […] A política trata da comunidade e da reciprocidade de seres diferentes». (ASS, 2000, 82) E acrescenta que, hoje, não se trata apenas de pluralidade externa dos actores sociais mas da pluralidade interna feita de diferentes pertenças e contraditórias orientações num mesmo actor social.
Mas, ainda segundo o mesmo autor, ‘pluralidade’ faz par com ‘conflitualidade’ como os dois «pontos de partida mais adequados para pensar o poder e a política» (loc. cit., 82). A acção política encerra «um elemento de hostilidade entre os seres humanos» (loc. cit., 83). E no entanto esse elemento é essencial à clarificação e à legitimação racional de diferentes posições argumentativas. Legitimação que, por seu turno, se torna indispensável para que o conflito não se perpetue.
E se bem que nem tudo seja político, são inúmeras as instâncias em que o político se manifesta. A linha de demarcação proposta por Santos Silva é muito clara e muito útil: é político o que está associado a uma «possibilidade de acção» (loc. cit., 88) publicamente enunciada, i.e., expressa numa política.
Mas é ainda o mesmo ASS que previne que se a acção política está «associada à decisão que envolve escolhas», e desejabilidade» e «exequibilidade» são duas características distintivas clássicas, também «o “irrealismo” pode ser […] uma virtude política, na exacta medida em que a política não é redutível à gestão do que existe como existe». E acrescenta: «Por mais que as correntes políticas puramente gestionárias pratiquem o contrário» (loc. cit., 90).
Se os partidos ainda são lugar para o enunciado livre de distintas possibilidades de acção, então importa que se não deixe morrer o que neles possa subsistir de «irrealismo». De vontade de outra coisa.
«C’est un joli nom, ‘Camarade’…» dizia uma canção que exaltava precisamente o espírito de partido. Mas o espírito de partido não dispensa, tanto como o sentido geral de um propósito comum, a divergência, a solidariedade e a franqueza. Ou assim me parece.
Augusto Santos Silva (2000), «A Acção Política, um Ensaio de Teoria e Perspectiva», in A política. Ensaios de definição, Ediciones sequitur
João de Almeida Santos (1999), Breviário Político-Filosófico, Fenda
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