Certo é que, naqueles anos extraordinários do imediato pós-25 de Abril, algumas experiências de genuína liberdade nos permitiram escolher o caminho, indiscutivelmente difícil, de combate a todos os dogmas, desde logo aqueles em que inicialmente nos formámos.
João Martins Pereira, cuja morte o Público anunciava na sua edição do passado sábado, é assim lembrado pelo autor do blogue Eterno retorno, o médico Paulo Calhau:
Fiquei triste com a notícia da morte de João Martins Pereira.Em 1976, na ressaca do PREC, foi na Gazeta da Semana que descobri algo de muito importante - uma outra forma de pensar a Esquerda. Uma Esquerda não estalinista. Uma Esquerda não maoista. Não à esquerda da Esquerda. Mas à esquerda da Social Democracia.(sic) Uma Esquerda libertária, inquieta, reflexiva, corajosa. Uma Esquerda utópica (?). O desaparecimento do semanário representou uma grande perda. Que então lamentei. E que hoje recordo. Como eu gostava de ter conservado toda a colecção de jornais - que comprava e lia com avidez - para agora recordar a lucidez, serena e inteligente, de João Martins Pereira.
Até sempre, Engenheiro!
Outras facetas da biografia de João Martins Pereira, com quem me cruzei entre 1976 e 1980, são detalhadas no obituário de José Vítor Malheiros[i]. Como, por exemplo, a sua participação, na qualidade de Secretário de Estado da Indústria e Energia, no IV governo provisório, após o 11 de Março, pela mão de João Cravinho, seu amigo e, então, Ministro da Indústria:
"O João Martins Pereira nunca tinha querido estar na acção política directa, assumir cargos políticos", conta João Cravinho, "Mas quando o fui convidar nessa altura, ele achou que não era possível dizer que não. Tinha a noção de que se tratava de um momento-chave. Lembro-me que me disse algo do género 'Isto agora é que é. Ou pegamos nisto e levamos isto para a frente ou isto perde-se'."
Autor de algumas obras de leitura obrigatória para quem queira conhecer o Portugal do período da transição para a democracia -- Pensar Portugal, Hoje, 1971; Indústria, Ideologia e Quotidiano, 1974; O socialismo, a transição e o caso português, 1976 – Martins Pereira aliava a um profundo conhecimento das questões que se prendiam com o desenvolvimento industrial e o sistema económico a radicalidade de uma análise da sociedade que não ignorava a centralidade da acção política, apesar do testemunho atrás transcrito. E deixa-nos sobretudo, mesmo àqueles que o conheceram pouco e mal, uma tentativa original, e quase solitária, de pensar a esquerda, fora de qualquer alinhamento, é certo, mas em diálogo crítico intenso com o seu tempo.
João Santos
[i] http://static.publico.clix.pt/docs/opiniao/JoaoMartinsPereira/
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